ALGUMAS POSSÍVEIS INCONSTITUCIONALIDADES DO §1º DO ARTIGO 489 DO NOVO CPC

A Constituição Federal de 1988 incluiu, entre os direitos fundamentais dos brasileiros e estrangeiros residentes no país, a inafastabilidade de apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV ).

Entre os princípios que norteiam esta atuação do Poder Judiciário estão o contraditório e o devido processo legal, cuja inobservância invalidaria a atuação do Estado.

De forma a se concretizar tais princípios, a Constituição, em seu art. 93, IX, determina que os magistrados, ao apreciarem as questões a eles submetidas, deverão fundamentar todas as decisões, sob pena de nulidade.

Observa-se, então, que toda lesão ou ameaça a direito poderá ser levada ao Poder Judiciário que, na atividade da jurisdição, deverá observar o contraditório, o devido processo legal e a necessária fundamentação de todas as decisões proferidas.

Interpretando o texto constitucional, o Supremo Tribunal Federal (STF) conferiu à norma contida no art. 93, IX da CF/88, o sentido de que ao juiz compete motivar as suas decisões, ainda de que forma sucinta, não estando obrigado a se manifestar acerca de todos os fundamentos e provas levados a juízo.

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

De acordo com esse entendimento, a mera exposição dos motivos que levaram o magistrado a concluir em determinado sentido já seria suficiente para atender ao requisito constitucional.

Ocorre que o Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105 de 16.03.2015) trouxe, em sua disciplina, mais precisamente no § 1º do seu art. 489 , rol de hipóteses em que não estaria atendida a motivação estabelecida pelo texto constitucional.

Observe-se, então, que se está diante de um conflito, tendo em vista que uma mesma decisão poderia ser considerada fundamentada, segundo a jurisprudência do STF, e não fundamentada, segundo regras então trazidas pelo NCPC, em seu art. 489, §1º.

Nesse sentido, alguns juristas passaram a defender a inconstitucionalidade do referido dispositivo, sob dois fundamentos.

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

O primeiro fundamento seria o de que texto legal não poderia restringir o significado da fundamentação prevista no art. 93, IX, da CF/88 , uma vez que tal dispositivo seria norma de eficácia plena, não admitindo qualquer restrição.

Haveria, assim, uma antinomia entre, de um lado, o texto constitucional e a interpretação conforme a Constituição, realizada pelo STF, e, do outro, o conteúdo do art. 489, § 1º do NCPC.

Neste caso, as regras clássicas da hermenêutica determinam a resolução do conflito pelo critério da hierarquia, o que terminaria por afastar do ordenamento a suposta norma inconstitucional.

O segundo fundamento defende que a norma trazida pelo NCPC estaria eivada do vício da inconstitucionalidade, uma vez que violaria o quanto previsto no art. 5º, LXXVIII , que prevê como direito fundamental a razoável duração do processo.

Segundo tal corrente, exigir que o magistrado se manifeste acerca de todos os fundamentos, argumentos e provas trazidas a juízo exigiria do julgador muito mais tempo a cada decisão, prática incompatível com a entrega de uma prestação jurisdicional célere.

Tal corrente traz como argumento o fato de que, ao seguir uma linha de raciocínio lógica e encadeada, argumentos transversos, que com ela não se compatibilizam estariam, por lógica, afastados, sendo desnecessária a manifestação específica.

LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Não obstante os argumentos trazidos acima, acreditamos que o posicionamento da inconstitucionalidade do texto do NCPC não irá prevalecer.

Inicialmente, cumpre esclarecer que a fundamentação das decisões possui duas funções imediatas.

A primeira delas seria a função endoprocessual, que se traduz na publicidade, às partes, das razões de decidir e que permitem o exercício do contraditório e devido processo legal, previstos no art. 5º, LIV e LV , da CF/88. Somente diante de tais elementos é que a parte poderá interpor o recurso cabível.

Além disso, quando devidamente fundamentada a decisão, o magistrado aproxima-se com mais chances de êxito da pacificação social, convencendo as partes da justiça da prestação jurisdicional entregue e evitando a interposição de recursos que delongam o processo.

Há, ainda, a função exoprocessual, ou social, que representa a possibilidade da sociedade fiscalizar e controlar os atos do Poder Judiciário.

Não fossem suficientes as duas funções mencionadas, a fundamentação ainda materializa a cláusula pétrea da separação dos Poderes, impedindo que a função judicante ultrapasse os limites constitucionais e transmude-se na função legiferante.

Observa-se, por todos os motivos acima, que a fundamentação, diante da relevância processual e social, deve ser sempre entregue

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

da forma mais completa possível, uma vez que representa a reunião de todos os direitos fundamentais mencionados e, até mesmo, a observância de não violação a uma cláusula pétrea.

Assim, a norma trazida no NCPC, ao estabelecer rol com espécies de decisões que não atenderiam ao dever de fundamentação previsto no art. 93, IX, da CF/88, não estaria violando o texto constitucional, mas sim, estabelecendo normas processuais que a colocariam em prática, estando devidamente autorizada pelo art. 22, I, da CF/88.

Poder-se-ia entender, inclusive, que o rol do dispositivo sob comento é exemplificativo e que toda decisão que não venha a resolver, por completo, as questões que lhe foram postas pelas partes não estará devidamente fundamentada.

Ressalte-se, entretanto, que os magistrados, em observância ao princípio da presunção da constitucionalidade das leis, deverão dar a tais dispositivos do Novo Código de Processo Civil a interpretação conforme a Constituição que mais se adeque aos princípios da razoável duração do processo e independência funcional dos membros do Poder Judiciário, no intuito de se realizar uma interpretação harmônica e sistemática de todo o ordenamento, afastando interpretações contrárias ao texto constitucional,

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

observa é a nítida tentativa do Novo Código de Processo Civil de trazer um processo mais célere, apto a realizar a pacificação social, com decisões que esgotem todas as fundamentações, diminuindo, assim, o número de recursos interpostos.

Este texto foi produzido por Bruna Sampaio Jardim, sócia de Guimarães e Meireles Advogados Associados e contou com a colaboração de colegas da equipe.